Lia de Itamaracá: 3ª homenageada na 7ª edição do Prêmio Profissionais da Música

Homenageada da 7ª edição – modalidade Educação | 20 categorias – Cerimônia de Premiação | em 2023 Brasília – Distrito Federal

Brasília, 22 de Novembro de 2022

Maria Madalena Correia do Nascimento nasceu em 12 de janeiro de 1944, na Ilha de Itamaracá, em Pernambuco. Criança levada, adorava brincar nos sítios do lugar com os irmãos e despertou cedo para a musicalidade, sobretudo porque sua mãe, Matilde Maria, participava ativamente dos cocos de roda – folguedo popular bem mais antigo que a ciranda de adultos. Ela descobriu e se encantou pelo balanço da ciranda, passando a frequentar as rodas dos cirandeiros.  Já adulta, assumiu a persona de Lia de Itamaracá, a partir de “Quem me deu foi Lia”, ciranda registrada pelo Mestre Antônio, com melodia de sua autoria.

Negra e alta, já chamava atenção por seu porte vistoso e imponente passou, aos poucos, a ser referência na condução e divulgação da ciranda em festivais promovidos no estado de Pernambuco nos anos 70 e 80. O reconhecimento além das fronteiras do estado, porém, ficava restrito ao personagem folclórico que só existia naquela canção: “Essa ciranda quem me deu foi Lia/Que mora na Ilha de Itamaracá”. Foram maus bocados até o reconhecimento.

Mulher, negra, pobre e semianalfabeta, começou cedo a trabalhar como empregada doméstica para ajudar a mãe no sustento da família. Ainda mocinha e consciente da dificuldade de viver como artista, trabalhou em um restaurante onde cumpria duplo expediente. De dia, era a cozinheira de mão cheia do restaurante Sargaço. À noite, deixava aforar a verdadeira Lia, uma enorme sereia negra, uma diva que soltava a voz e convidava a todos para dançar ciranda. A visibilidade poderia trazer a fama, mas foi atravessada por oportunistas. Foi assim que em 1977 gravou o LP intitulado Lia de Itamaracá – A rainha da ciranda (Tapecar Produções). Como pagamento, recebeu poucas cópias do disco e um desencanto com a carreira que iniciava.

Compreendia as dificuldades de atuar como artista da cultura popular e de sobreviver só com a ciranda. Com a experiência adquirida como cozinheira, Lia pediu emprego a um político de projeção. Passou, então, a ser merendeira de uma escola no bairro de Jaguaribe, missão que desempenhou até se aposentadoria com todo o carinho e afeto que ela, certamente, destinaria também aos filhos que, infelizmente, não vingaram.

A amargura por não crescer como artista e se sentindo abandonada e desprestigiada,  mergulhou suas mágoas na bebida. Com a ocorrência do incêndio em sua casa, no final da década de 80, desceu ao fundo do poço. Novamente, precisou gastar mais uma parcela de sua dignidade e recorreu aos donos do poder em busca de auxílio para refazer sua vida. A casa que, na verdade, era um mocambo de taipa coberto com palha de coqueiro, foi reconstruída com tijolos noutro terreno, mas a amargura pelas desilusões artísticas continuava. Não ter meios de libertar a artista que trazia dentro de si era algo que lhe sufocava. Nessas horas, o apoio de Antônio Januário, o Toinho, seu companheiro de vida e de palco, foi fundamental para que ela não sucumbisse de uma vez.

O Manguebeat, capitaneado por Chico Science e Fred Zero Quatro nos anos 90 abriria as portas para que Lia pudesse brilhar. O movimento musical que promoveu a fusão do rock com ritmos da cultura popular como maracatu, coco, ciranda e embolada, tirou Lia de Itamaracá do limbo. Ela tinha quase 50 anos e seu talento, finalmente, teria uma chance real. Nessa época conheceu Beto Hees que se tornou seu produtor. Com o know-how conquistado em uma década atuando na Europa, Hees conduziu a carreira da cirandeira de modo a restaurar a sua importância no cenário cultural. A artista se livrou de uma vez por todas da fuligem da frustração e foi reconduzida ao seu posto de Rainha da Ciranda, ao mesmo tempo em que ajudava a difundir essa cultura.

Em 1998 Lia se apresentou no festival Abril Pro Rock, celebrada pelo Manguebeat. E antes da virada do século XX, lançou em 2000, no Brasil e na França, o CD Eu sou Lia, reunindo entre as faixas alguns registros ao vivo gravados no Projeto Vozes do Mundo. Conhecida por sua generosidade, Lia trouxe para junto de si, a fim de acompanhá-la em suas apresentações, as cirandeiras Dulce e Severina. Filhas do precursor Antônio Baracho, que, em que pese a rica trajetória que tiveram ao lado do pai, andavam esquecidas e fora do circuito. A parceria maravilhosa dura até hoje.

Com a ajuda de amigos e admiradores, Lia de Itamaracá ergueu em 2005, na orla de Jaguaribe, aquele que é considerado por ela mesma uma de suas obras mais importantes: o Centro Cultural Estrela de Lia (CCEL). O espaço de estrutura simples, que ganhou o título de Patrimônio Imaterial de Pernambuco, servia como ponto de preservação e difusão da ciranda e palco das mais diversas manifestações culturais e tinha um cunho social relevante para a população carente da ilha, pois oferecia de modo gratuito cursos profissionalizantes e palestras de preservação ambiental e de educação sexual. Por falta de apoio desde 2013, a estrutura do CCEL desabou no ano seguinte, e, atualmente, há em andamento um novo esforço da cirandeira para que ele seja reconstruído e volte a funcionar com a efervescência dos bons tempos.

A figura majestosa de Lia, o seu porte de deusa africana – recentemente foi certificado que ela compartilha ancestralidade genética maternal com o povo Djola da Guiné-Bissau – sempre foi um chamariz para diretores de cinema e de televisão. Seja atuando como ela mesma ou encarnando algum personagem, a cirandeira já tomou parte em diversas produções como as minisséries Riacho Doce (1990) e Memorial de Maria Moura (1994); nos filmes Parahyba mulher macho (1994), Recife frio (2009) e Sangue azul (2015); e em documentários a exemplo de Eu sou Lia (2003) e O mar de Lia (2010).

Senhora de brilho próprio e artista de grande importância no cenário cultural brasileiro, Lia de Itamaracá levou e continua levando seu canto e sua dança para os mais distantes recantos do seu país. Também já excursionou pela Europa, sempre carregando consigo seu sorriso farto e sua alegria contagiante.

Em 2004, numa cerimônia realizada em Brasília, Lia recebeu a medalha de Comendadora do Mérito Cultural instituída pelo Ministério da Cultura. No ano seguinte, ela foi reconhecida por lei estadual Patrimônio Vivo de Pernambuco e, em 2023 será homenageada pelo Prêmio Profissionais da Música, na modalidade Educação por toda a sua contribuição na valorização e manutenção da importante manifestação que tão lindamente ela representa, honra, divulga e compartilha.

Viva Lia de Itamaracá!

Musicalmente,
Temos um país para reconstruir. Viva a Cultura Popular

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